• Gordura trans: o veneno da alimentação moderna

     

    Por muito tempo, as gorduras de origem animal – como a manteiga e a banha de porco – foram essenciais para a alimentação humana, sendo usadas no preparo de quase todo tipo de comida. Isso só começou a mudar na segunda metade do século XIX, quando a manteiga tornou-se escassa e cara na França. Preocupado com a nutrição de seu exército e da população mais pobre, Napoleão III ofereceu uma recompensa a quem desenvolvesse um substituto satisfatório para o produto. O vencedor do desafio foi o químico Hippolyte Mège-Mouriés, que, depois de vários experimentos, conseguiu produzir uma gordura pastosa que atendia às exigências do imperador.

    A experiência francesa deu tão certo que a nova gordura logo passou a ser fabricada em grande escala, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, e acabou sendo uma das protagonistas da intensa industrialização da alimentação que aconteceria ao longo do século XX. Obtida a partir da hidrogenação de óleos vegetais em estado líquido, a gordura vegetal hidrogenada tinha uma consistência firme, ideal para ser manipulada pela indústria – além, é claro, de ser muito barata. Como se não bastasse, ela ainda melhorava o sabor e a textura dos alimentos, deixando-os sequinhos e crocantes, e aumentava a validade dos produtos.

    Durante décadas, essa gordura foi utilizada indiscriminadamente não apenas por fabricantes de alimentos e redes de fast-food, mas também por estabelecimentos onde supostamente se podia comprar uma comida mais caseira, como restaurantes, padarias e confeitarias. Ela também era presença obrigatória em nossa cesta básica sob a forma de um creme semelhante à manteiga, porém – acreditava-se – mais saudável: a margarina, um produto com tanto apelo popular e publicitário que acabou se transformando em sinônimo de família feliz – quem nunca ouviu a frase “família de comercial de margarina?”.

    O reino encantado da gordura vegetal hidrogenada só começou a ruir em meados da década de 1990. Foi quando começaram a surgir os primeiros estudos mostrando que o processo de fabricação da queridinha da indústria embutia uma gordura criada artificialmente. Era a descoberta da gordura trans, uma substância que não é sintetizada pelo organismo e, por isso, permanece depositada no corpo humano. Entre os problemas associados a ela estão o aumento do LDL (colesterol ruim) e a diminuição do HDL (colesterol bom) no sangue. A gordura trans também é responsável pela produção da gordura visceral, que se acumula na região da cintura e pode levar à síndrome metabólica, um conjunto de males como diabetes, hipertensão, mau colesterol e triglicérides altos – uma verdadeira máquina mortífera, especialmente no que diz respeito a doenças cardiovasculares como o infarto e o acidente vascular cerebral (AVC).

    A revelação repercutiu no mundo inteiro. Aos poucos, governos e instituições começaram a se posicionar em relação ao uso descontrolado do produto. Em 2003, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que o consumo de gordura trans industrial fosse reduzido ao menor patamar possível. Nesse mesmo ano, a Dinamarca foi pioneira em bani-la dos alimentos industrializados, enquanto Canadá e EUA optaram por obrigar os fabricantes a especificar nos rótulos a existência de gordura trans – o mesmo modelo seria adotado no Brasil em 2006. Em 2005, o Canadá aumentou a rigidez da legislação para forçar a indústria a diminuir o uso de gordura trans na composição dos alimentos, o que também foi feito em cidades americanas como Nova York. Em 2009, a OMS reviu sua posição e passou a indicar a eliminação da gordura trans da dieta humana.

    O que mudou no Brasil

    Não há dúvida de que a cruzada contra essa inimiga da saúde tomou força nos últimos anos, mas será que o brasileiro está realmente consumindo menos gordura trans? Infelizmente, a legislação adotada no país possui brechas que permitem uma mudança pouco significativa. A maior delas é a possibilidade de “mascarar” a verdadeira quantidade da gordura nos produtos industrializados, já que alimentos que contenham menos de 0,2 gramas por porção são considerados “livres” da substância. O problema é que não há regulamentação quanto ao tamanho da porção, o que possibilita, por exemplo, que um biscoito feito com gordura vegetal hidrogenada e porção sugerida de 30 gramas (cerca de 2,5 biscoitos) seja classificado como “zero trans”. No entanto, a porção indicada pelo fabricante nem sempre corresponde ao que normalmente é consumido pelas pessoas, e quem comer mais de uma porção estará, sim, ingerindo a gordura venenosa.

    E esse não é o único obstáculo enfrentado por quem quer evitar a gordura trans: conseguir identificá-la na lista de ingredientes dos produtos é uma façanha que exige paciência e algum conhecimento. Isso porque há pelo menos 23 nomes diferentes* para o tipo de gordura que pode conter os ácidos graxos trans. A pesquisa da dissertação de mestrado da nutricionista Bruna Maria Silveira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), analisou os rótulos de 2.327 alimentos industrializados e encontrou desde a denominação mais comum, “gordura vegetal hidrogenada”, até descrições equivocadas, como “óleo vegetal líquido e hidrogenado”. Em outras palavras, a legislação brasileira também não se preocupou em criar um padrão para a rotulagem, confundindo – e enganando – até mesmo o consumidor mais consciente.

    A falta de clareza na informação nutricional opõe-se ao objetivo de uma lei baseada, em grande parte, no bom senso do consumidor, que, conhecendo as quantidades de gordura trans presentes nos produtos, poderia fazer escolhas mais saudáveis. A orientadora da pesquisa da UFSC, professora Rossana Proença, sugere que qualquer quantia dessa gordura seja informada no rótulo, e também que a indicação de ausência de gordura trans industrial seja restrita a alimentos que comprovadamente não a utilizem em sua composição. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as regras dos rótulos estão sendo revisadas, mas não há prazo para a implementação das mudanças.

    O que você pode fazer

    Enquanto os órgãos responsáveis não se mexem, resta ao consumidor ficar atento e tentar fugir da gordura trans. Para a engenheira de alimentos Ana Gabriela Ganzer, coordenadora de Produção da Sabor Caseiro, as mudanças também podem começar a partir de iniciativas individuais. “Cada um de nós pode cobrar das indústrias essa regularização e as informações corretas no rótulo”, acredita. Outra forma de protesto é valorizar os fabricantes que efetivamente evitam a gordura trans e a substituem por outros tipos de gordura – eles até podem ser minoria, mas existem.

    Entre as alternativas que têm sido utilizadas pela indústria, a principal é o óleo de palma, que é livre de gordura trans porque não precisa ser hidrogenado para atingir o estado sólido. Os fabricantes, contudo, alegam que esta é uma gordura bem mais cara e ainda não produzida em grande escala. Outro risco parece ser o seu alto índice de gordura saturada. “É preciso ter cuidado para não trocar seis por meia dúzia, pois a gordura saturada continua sendo prejudicial à saúde”, adverte Ana Gabriela.

    Optar por uma alimentação mais saudável, principalmente preferindo produtos naturais aos industrializados, também é uma maneira eficaz de reduzir a ingestão de gordura trans. É o que procura fazer a Sabor Caseiro no preparo de suas refeições. “Nós valorizamos o “caseiro" do nosso nome. Não usamos preparações industrializadas nem condimentos prontos e o uso de gordura vegetal hidrogenada em nossa cozinha é mínimo. A não ser pela grande quantidade, é como se nossas refeições fossem feitas em casa, e por sorte essa é a forma mais saudável e gostosa de preparar uma refeição”, finaliza Aloisio Perdomini, diretor da Sabor Caseiro.

    *A lista a seguir apresenta as diferentes denominações que podem ser encontradas nos rótulos dos produtos brasileiros, conforme a pesquisa da nutricionista Bruna Maria Silveira (UFSC):

    - Gordura

    - Gordura vegetal

    - Gordura de vegetal de girassol

    - Gordura vegetal de soja

    - Gordura de soja parcialmente hidrogenada

    - Gordura hidrogenada

    - Gordura hidrogenada de soja

    - Gordura parcialmente hidrogenada

    - Gordura parcialmente hidrogenada e/ou interesterificada

    - Gordura vegetal hidrogenada

    - Gordura vegetal parcialmente hidrogenada

    - Hidrogenada

    - Margarina vegetal hidrogenada

    - Óleo de milho hidrogenado

    - Óleo vegetal de algodão

    - Soja e palma hidrogenado

    - Óleo vegetal hidrogenado

    - Óleo vegetal líquido e hidrogenado

    - Óleo vegetal parcialmente hidrogenado

    - Creme vegetal

    - Composto lácteo com gordura vegetal

    - Margarina

    - Margarina vegetal

    - Mistura láctea para bebidas

    Referências consultadas:

    SILVEIRA, Bruna Maria. Informação alimentar e nutricional da gordura trans em rótulos de produtos alimentícios industrializados. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina em 2011.

    DAVID, Marília Luz. “0% gordura trans”: uma análise da construção de riscos alimentares. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina em 2011.