• Saúde pela prevenção

     

    Em junho deste ano, parte da população brasileira foi às ruas reivindicar melhorias em diversos setores. Se fosse feita uma lista das principais causas defendidas nas manifestações, a saúde certamente estaria entre os primeiros lugares, ao lado de transporte público, educação e combate à corrupção. Chamaram a atenção, por exemplo, os cartazes pedindo hospitais “padrão Fifa”, em uma clara crítica à construção de estádios de futebol de “primeiro mundo”, enquanto instituições de saúde ficam à míngua, sem receber investimentos.

    Na esteira dos protestos vieram outras polêmicas, como a aprovação pelo Senado – com posterior veto parcial da presidente Dilma Roussef – da Lei do Ato Médico, a contratação de médicos estrangeiros para vagas não ocupadas por brasileiros e a tentativa – malsucedida – de aumentar a duração do curso de Medicina em dois anos com a prestação de serviço civil obrigatório ao SUS. Com os ânimos acirrados, a classe médica vem se mobilizando para impedir ou modificar as medidas governamentais.

    As reclamações dos médicos misturam-se às da população: os hospitais estão mal equipados, não há estrutura de atendimento nas periferias e no interior, faltam médicos nos postos de saúde. Tanto de um lado quanto de outro, o que se percebe é que as deficiências do setor acabam sempre sendo atreladas aos recursos físicos, materiais e humanos disponíveis. Em resumo: quando se pensa em saúde, o que automaticamente vem à cabeça são hospitais e médicos.

    Uma pesquisa feita em 2011 pelo IBOPE-CNI ajuda a entender o fenômeno. Com o objetivo de identificar as causas da insatisfação dos brasileiros com o sistema de saúde, o levantamento mostrou claramente que a população associa a má qualidade à falta de médicos e de infraestrutura. Perguntados sobre qual seria a principal ação para melhorar o serviço médico na rede pública, numa questão de múltiplas respostas, 57% dos entrevistados responderam que deveria aumentar o número de médicos, e 54% consideram necessário equipar melhor os hospitais e postos. Quanto aos principais problemas do setor público de saúde, 55% acham que a demora no atendimento é o principal, seguido pela falta de equipamentos, unidades e investimentos (10%) e pela falta de médicos (9%).

    Saúde é mais que hospital

    Mas será que é só com hospitais, médicos e equipamentos que se faz um sistema de saúde de qualidade? Esta pode ser a visão da opinião pública, trazida à tona pelas manifestações de junho, mas, na prática, é assim que se promove a saúde das pessoas? Não estaria esse modelo, ao contrário, mais centrado na doença? É claro que a estrutura de qualquer sistema de saúde é essencial para o atendimento à população, mas o que muitos parecem esquecer é que saúde também se faz em outras pontas: a da prevenção e a da promoção.

    Há uma diferença entre elas: prevenir exige uma ação antecipada a fim de impedir o progresso de uma doença. As ações preventivas procuram reduzir a incidência e a prevalência de problemas de saúde específicos nas populações, e seus projetos normalmente incluem a divulgação de informação científica em linguagem leiga e de recomendações de mudanças de hábitos. Já promover tem uma definição bem mais ampla, pois refere-se a medidas que não se dirigem a uma determinada doença, mas servem para aumentar a saúde e o bem-estar gerais. As estratégias de promoção enfatizam a transformação das condições de vida e de trabalho que influenciam, positiva ou negativamente, a saúde das pessoas.

    Em ambos os casos, percebe-se que os principais determinantes da saúde são exteriores ao sistema de tratamento. Esse é um discurso relativamente recente, surgido oficialmente durante a Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, realizada em 1986 na cidade de Ottawa, no Canadá. Na ocasião, disseminou-se a ideia da saúde como qualidade de vida resultante de um complexo processo condicionado por fatores como alimentação, justiça social, ecossistema, renda e educação. No Brasil, esse conceito mais amplo surge no mesmo ano, tendo sido incorporado ao Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde.

    Ao extrapolar o sistema de atendimento médico e reconhecer suas limitações, os conceitos de prevenção e promoção pressupõem que cada pessoa tenha autonomia para cuidar de si própria. É claro que cabe ao Estado prover condições adequadas de habitação, saneamento, trabalho e educação – as quais afetam, direta ou indiretamente, a saúde da população –, mas há certas áreas em que somos nós os grandes responsáveis por prevenir doenças e promover a saúde. Aí entra a adoção de um estilo de vida saudável, que inclua uma boa alimentação e atividades físicas regulares – hábitos que podem até ser estimulados por programas governamentais, mas que dependem principalmente da conscientização individual de que é preciso cuidar da saúde antes que ela se deteriore.

    Alimentação é saúde

    Um dos requisitos básicos para a prevenção e a promoção da saúde é uma boa alimentação. Não é à toa que as ações de alimentação e nutrição têm papel fundamental no contexto da Atenção Básica em Saúde e, em especial, na Estratégia de Saúde da Família do SUS, especialmente no que se refere à prevenção. Afinal, pela alimentação se pode enfrentar, por exemplo, as doenças crônicas não transmissíveis, como a hipertensão, o diabetes e as doenças cardiovasculares, que, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), já representam 58,5% de todas as mortes ocorridas no mundo e constituem um sério problema de saúde pública.

    A importância do papel da alimentação no âmbito do SUS foi fortalecida com a inserção, a partir de 2008, do profissional de Nutrição nas equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). O trabalho dos nutricionistas abrange desde o diagnóstico da situação de segurança alimentar e nutricional em cada área de abrangência, até o atendimento individualizado entre os usuários da Atenção Básica. Esses profissionais contam com materiais de apoio e orientação, como o Guia Alimentar para a População Brasileira (disponível aqui), que apresenta recomendações e ações voltadas a indivíduos, famílias e comunidades.

    A expansão da rede de Atenção Básica nos municípios brasileiros e nas periferias das grandes cidades tende a levar as iniciativas preventivas a uma parcela cada vez maior da população. Com alto grau de descentralização e capilaridade, a ideia é que essa rede esteja próxima das pessoas e seja a principal porta de entrada dos usuários ao sistema público de saúde. As equipes são multidisciplinares, incluindo enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde, dentistas, nutricionistas e, claro, médicos. A atuação desses profissionais junto à comunidade pretende, em situações ideais, resolver a maior parte dos problemas nas próprias Unidades Básicas de Saúde e, sobretudo, prevenir o surgimento e o avanço de doenças.

    Apesar de ser reconhecido como um dos mais completos do mundo – somos o único país com mais de 100 milhões de habitantes a contar com um sistema de saúde público, universal, integral e gratuito –, o projeto brasileiro de saúde pública, como se sabe, ainda é repleto de deficiências de todos os tipos. Por isso, é legítima a reivindicação da população por melhores condições de atendimento. No entanto, o conceito moderno de saúde é muito mais amplo do que este que prevê apenas mais médicos e infraestrutura hospitalar. Começando em casa e em nossos hábitos diários, está também em nossas mãos desafogar o sobrecarregado sistema de saúde agindo antecipadamente sobre os problemas – ou impedindo que eles ocorram. Em grande parte dos casos, isso é possível, e os grandes beneficiados seremos nós mesmos.

    Referências

    Política Nacional de Atenção Básica. Ministério da Saúde, 2012. Disponível aqui.

    O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção, de Dina Czeresnia. Disponível aqui.

    Ações de alimentação e nutrição na atenção básica: a experiência de organização no Governo Brasileiro, de Patrícia Constante Jaime. Revista de Nutrição, dezembro de 2011. Disponível aqui.

    A saúde na voz do povo e as manifestações de junho de 2013, de André Medici, blog Monitor de Saúde. Disponível aqui.